SINAIS DOS TEMPOS – Por José Fernando Magalhães (2)

 

 

Entre Ser e Parecer

 

Há quem conte a vida em anos, em aniversários e datas redondas que se celebram com velas e fotografias. A idade é vista, na maior parte das vezes, como um marco inevitável, uma fronteira invisível que separa o que fomos do que já não poderemos vir a ser. No entanto, para quem se recusa a viver prisioneiro da cronologia, a verdadeira juventude não reside na pele lisa, mas na alma inquieta. A obsessão ocidental pela aparência juvenil e pela negação do envelhecimento contrasta com a visão de outras culturas, onde cada ruga é vista como um mapa de vida, uma história de superação e experiência.

A velhice, dizem, é inevitável. Mas será mesmo? Ou não será antes uma construção social, uma etiqueta que os outros nos colam quando deixamos de corresponder às expectativas da juventude eterna? Nunca somos velhos para nós próprios. O espelho pode mostrar cabelos brancos e rugas, mas dentro de nós persiste o mesmo olhar curioso, o mesmo desejo de descoberta, a mesma capacidade de nos maravilharmos com o mundo. A idade não está na cronologia, mas no cansaço da alma. “Sinto-me tão velho, não de anos, mas de cansaço… a minha alma, essa, continua com os seus quinze anos” [frase inspirada na obra de Fernando Pessoa – Bernardo Soares]. Enquanto no Ocidente a juventude é frequentemente idolatrada, em muitas culturas orientais, como a japonesa, a idade avançada é sinónimo de sabedoria e respeito, e os mais velhos são considerados pilares da sociedade.

Os anos que sentimos não coincidem com os anos que nos atribuem. Cada indivíduo habita uma temporalidade própria, feita não da contagem linear dos anos, mas da intensidade das experiências. Um Verão vivido em plenitude pode equivaler, para uma criança, a toda uma década de rotina adulta. Esta dicotomia não é nova. Já Santo Agostinho, na sua reflexão sobre o mistério do tempo, o via não como uma realidade exterior, mas como uma extensão da alma. Mais tarde, o filósofo Henri Bergson aprofundou esta visão com o conceito de duração, que é o fluxo contínuo e inseparável da nossa consciência, que contrasta com o tempo físico, divisível e impessoal. A memória, nesse processo, é arquitecta da nossa idade interior, conservando preservados momentos decisivos, aproximando-os do presente, enquanto outros, insignificantes, se afastam até quase se perderem. A nossa idade interior é feita de instantes intactos, porque a infância não é um tempo que passou, mas uma dimensão que sobrevive em nós. “O menino que eu fui não envelheceu. Continua a olhar o mundo com os mesmos olhos”. [frase inspirada na poesia de Sophia de Mello Breyner Andressen]

A sociedade, porém, insiste em medir-nos. Impõe calendários, reformas, limites. Diz-nos quando devemos aprender, casar, ter filhos, alcançar posições profissionais ou quando nos devemos aposentar. Estes marcos sociais, transformados em normas, colidem frequentemente com os nossos ritmos internos. Pior ainda, repetidos vezes sem conta, podem transformar-se numa profecia que se concretiza, levando-nos a interiorizar restrições que não nasceram em nós, mas no olhar dos outros. Em algumas sociedades indígenas e tradicionais, a idade não é um critério para nos afastarmos da vida activa, mas sim para nos aproximarmos do papel de guardiões da memória e do conhecimento ancestral, papel que se torna ainda mais importante com o passar dos anos.

Reconhecer esta dualidade é, talvez, o primeiro passo para a libertação temporal. Não se trata de negar a realidade cronológica, mas de não permitir que ela anule a nossa experiência autêntica do tempo vivido. A sabedoria pode residir precisamente nesta consciência; honrar ambas as idades, a que carregamos por dentro e a que os outros vêem por fora, sem permitir que nenhuma delas  nos defina completamente. Porque, para lá do número, “O que fomos, somos. O tempo só conta os dias, não a essência” [frase inspirada em Virgílio Ferreira].

Mas a idade desvanece-se quando dançamos sem motivo, quando aprendemos alguma coisa nova, ou quando nos apaixonamos de novo. Não existe quando rimos até nos doer a barriga, quando as lágrimas nos limpam a alma, nem quando sentimos o vento no rosto e nos lembramos que estamos vivos. Nesses instantes, somos todos eternamente jovens, independentemente do que diz o calendário. Há quem envelheça aos trinta, preso a rotinas, e quem floresça aos oitenta, com sede de descoberta, porque a idade é, afinal, a forma como nos posicionamos perante a existência.

A autêntica experiência da vida transcende as categorias cronológicas. Reconhecer a idade como uma construção interior não significa negar o envelhecimento físico, mas libertar-nos da tirania que faz dele uma prisão. Esta consciência da finitude liberta-nos, em vez de nos aprisionar. Na filosofia existencial de Martin Heidegger, a nossa existência é definida como um ser-para-a-morte, não de forma sombria, mas como a condição que nos impele a viver de forma autêntica e a assumir a responsabilidade pelas nossas escolhas no presente. O corpo pode desacelerar, mas o espírito, esse, não tem travões.

No fim, a idade é apenas uma sombra projectada pela cultura e pelo olhar dos outros. Dentro de nós, o tempo não se mede em anos, mas em instantes de plenitude, quando rimos até nos faltar o ar, quando dançamos sem motivo, ou quando o corpo se esquece da contagem e a alma se reconhece infinita. A juventude é a essa chama que não obedece a calendários. E talvez a única verdadeira medida da vida seja esta – a intensidade com que ousamos vivê-la.

 

 

2 Comments

    1. Obrigado por essa frase. É uma bela forma de ver o tempo.
      A minha visão é que o ‘SINAIS DOS TEMPOS’ é sobre as marcas que esse ‘tempo único’ nos deixa. São as impressões digitais que o presente deixa no passado e que nos ajudam a entender para onde vamos. Mas, sim, a ideia de que ele é um só é um ponto de partida muito inspirador. Um abraço

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